6 de jul. de 2008

INTERVALO
Quem te disse ao ouvido esse segredoQue raras deusas têm escutado -Aquele amor cheio de crença e medoQue é verdadeiro só se é segredado?...Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.Não foi um outro, porque não sabia.Mas quem roçou da testa teu cabeloE te disse ao ouvido o que sentia?Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?Foi só qualquer ciúme meu de tiQue o supôs dito, porque o não direi,Que o supôs feito, porque o só fingiEm sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,A teu ouvido vagamente atento,Te falou desse amor em mim presenteMas que não passa do meu pensamentoQue anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,A teus ouvidos de eu sonhar-te disseA frase eterna, imerecida e louca -A que as deusas esperam da lediceCom que o Olimpo se apouca.
Fernando Pessoa

ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braçosE chama-me teu filho... eu sou um reique voluntariamente abandoneiO meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,Em mão viris e calmas entreguei;E meu cetro e coroa - eu os deixeiNa antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,Minhas esporas de um tinir tão fútil,Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,E regressei à noite antiga e calmaComo a paisagem ao morrer do dia.
Fernando Pessoa, 1913

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