29 de mar. de 2007

Caminhava sem rumo às margens do Rio de Contas. O mormaço desta sexta-feira, o fazia suar desvairadamente. O coração opresso. A dor da solidão. O medo do futuro. As incertezas do presente. Agora, o chão já não tinha a consistência dura do cascalho. Seus pés pisavam na areia, agridoce do rio. Quente e úmida. A vegetação também mudara. O verde predomina sobre o cinza. Os umbuzeiros sempre verdes parecem reluzir suas folhas rebeldes. Insolentes contra o sol do sertão. Os passos largos demonstram indisfarçável cansaço. Um pato d´agua voa sorrateiro em voltas curtas e desajeitadas. Uma garrincha solitária destila sons agudos e perfeitos escondida nos galhos de uma umburana. O juazeiro imponente abriga um bando de Açus. Mudos, graúdos, observadores. Silêncio. Vento morno. A cidade está tão longe. Sente aquela paz só possível quando se isola de todos. Encontra uma pequena elevação debaixo da sombra de uma gameleira e para para refazer as forças. . Tira a camisa e o tênis, os coloca numa pequena pedra e mergulha no rio. A agua refrescante molha seu corpo suado. A sensação é indiscritível. Parece sofrer um choque térmico. Ao sair da água em direção à sombra protetora da gameleira, já sente o corpo mais leve. Como se uma imensa carga o tivesse deixado.
Sempre seria assim? se pergunta. Deita-se com as mãos espalmadas sobre a cabeça, usando a camisa e o tênis como travesseiro. Na imensidão cinza do céu, vê o vôo calma e sereno dos urubus seguindo tranquilos as correntes aéreas. Uma imensa paz toma conta do seu coração. adormece tranquilo e sonha com a sua mãe. ela está vestida de verde claro, sorrindo sentada numa cadeira de vime na varanda da casa em que moraram no Alto da Balança, no jequiezinho. Uma fita vermelha na cabeça. Sua avó aparece e de repente não estão mais na varanda e sim na fazenda Fontinha. Tudo muda de repente e ele esta voando sobre o teto da igreja Matriz. Porém a igreja está fora de lugar, virada para o poente e não para o nascente. Acorda depois de algumas horas e sente uma imensa vontade de chorar. Tenta adivinhar o canto dos pássaros ao seu redor ficando de olhos fechados. O canto macio do Cardeal, o triste assobio das lavandeiiras. Falta os canários, hoje raros, quase extintos.
Sabe que tem que voltar. O sol se apressa em declínio atrás da Serra da Salgada. Solidão. Casa vazia. Oca. Seu ocupado pai ainda não deve ter chegado. Uma casa grande e vazia. No entanto, o maior vazio é aquele que atinge seu peito. Que aflinge sua alma. A dor da timidez, da ausência, daquilo que poderia ser e não é. O caminho de volta é mais fácil. Desce tranquilo e sem o mormaço da vinda. O vento agora é fresco. As árvores balançam seus ramos imprecisos. A mudança no solo é sentida com certo prazer. Sair do areal o permite andar muito mais rápido. Vê as primeiras casas. Vê os trabalhadores retornarem às suas casas após um dia de labuta. Vê de volta a silhueta dos telhados altos do centro da cidade. Entra na rua onde mora. Muitos adolecentes voltando das escolas. Risos. buzinas. Carros e motos. Abre a porta. Sobe a escada calmamente. Essa é sua vida. Esse é seu refúgio. E seu cárcere.

17 de mar. de 2007

OUTONO

O calor forte de março ainda aquecia a eterna e insólita Cidade Sol. Nas ruas de paralepípedos o sol crestava o dorso das pedras com avidez. O vento morno e calmo desta tarde silenciosa dava um certa malemolência no andar de Kátia. Saía de casa atrasada mais uma vez, já eram duas horas da tarde e entraria no trabalho quinze minutos depois.Chegaria depois do horário. Certamente receberia uma advertência verbal e discreta da gerente, Patrícia, com sua voz metálica e firme, dita com doçura, é verdade, mas com muita determinação.
No ponto de ônibus abre maquinalmente a revista que traz na bolsa. Uma dessas revistas de fofocas e boatos sobre celebridades. Na seção de astrologia lê que nesse inicio de Outono os astros lhe estavam favorável. De repente fica extasiada com a frase: Nesse início de Outono. Outono. Nunca mais havia reparado que o ano se dividia em estações. Isso só se ouvia na época da escola. O outono começa hoje! Pensou e quase sorriu. Parece ter pensado em voz alta. Um homem de meia idade sentado ao lado olhou para ela de surpresa. Seu coração batia descompassado. Como se descobrisse algo novo. Como se encontrasse um grande tesouro. Seu corpo se agitava num frêmito inquietante. Qual a razão de tanta agitação. Outros outonos já vivera e se quer havia percebido. Muitos marços passaram por ela sem que se apercebesse de uma nova estação. Lembrava-se daqueles livros que as escolas públicas, nas quais estudou adotavam. Livros que traziam as ilustrações das "Quatro Estações" perfeitamente divididas. E sonhava com um lugar que caísse neve no inverno ou ventasse frio no outono. Mais Jequié não admite meio termos! -admirava-se Kátia. Ela própria é toda um interjeição. Ou se está quente ou se está menos quente. Sim é verdade que quando chove algumas pessoas chegam a usar jaquetas, mas apenas para não passar a oportunidade e ficarem sem usar. Não faz frio propriamente. Concluía com determinação.
Outono. Kátia vê o ônibus se aproximar do ponto mais não faz menção de se levantar. O homem de meia idade levanta-se e entra no coletivo. Porém ela tão extasiada está que não percebe , definitivamente chegaria atrasada no trabalho. Outono! Parece uma poema - pensava. Sorria para o céu totalmente azul desta tarde. Sorria porque descobrira que não precisaria ir para um emprego do qual não gostava. Acabara de descobrir que a vida era algo tão simples como a palavra outono. Lá estava ela escondida entre fotos de celebridades e previsões astrais. No entanto quantas emoções indescritíveis sentia ao lê-la. Ao recitá-la em voz baixa. Viver! Outono! A quanto tempo não havia esquecido de si mesma! Quantos momentos de sua vida vivera em função dos outros, se admirava.Quantos abraços deixou de dar, quantos beijos, quanta ternura poderia ser compartilhada se viesse a pensar mais em si mesma.
Kátia levantasse do ponto de ônibus e segue em direção a sua casa. Uma imensa liberdade circunda o seu coração e satura a sua mente. Outono! agora é minha vez de viver!

11 de mar. de 2007

O CHOFER
Todo dia de manhã cedo era o primeiro a chegar ao prédio da Prefeitura Municipal de Jequié. Naquele tempo ainda ficava no centro da cidade, ali próximo a praça dos Caixeiros Viajantes, quase em frente a casa de Tote Lomanto. Radiante em um uniforme azul marinho e um quepe também azul, lá estava ele todo feliz, se chamava João Cardoso mas, todo mundo lhe conhecia como Chofer. Durante alguns anos servira à família Lomanto como motorista particular, e agora fora escolhido pelo prefeito Lomanto Jùnior como motorista da prefeitura, melhor, do gabinete do prefeito, naquele ano de 1954. Tamanha alegria só fora superada pela notícia de que se trajaria de chofer e que seu uniforme fora encomendado na Rua Chile, em Salvador.
Desde então ele se transformara. Para quem ainda não o conhecia, sempre se apresentava como o Chofer do Prefeito. De pele escura, com uma pequena mais saliente barriga, e um sorriso branco e espontâneo, João Chofer era todo devoção ao Prefeito. De uma fidelidade canina e sincera, sem nenhuma intenção além de servir bem àquele que para ele era seu grande benfeitor.
Nesta manhã de Domingo, quando as chuvas de março caem sobre a Cidade Sol, sacodindo os galhos baixos da goiabeira e agitando os imponentes galhos da cinquentenária mangueira no meu quintal, sem vontade de levantar, fico rolando na cama. Lembro-me deste Chofer lendário de Jequié. Incrível que nós seres humanos. Com nossos defeitos e qualidades. Ambições e sonhos. Ás vezes nos esquecemos do fim principal da nossa vida. Como é fácil se perder nos caminhos da vida! Como é difícil acertar a rota. João Chofer na sua simplicidade encontrou um caminho, um objetivo: Servir ao prefeito. Se para ele aquilo o dignificava, como não será edificante servir a uma causa maior. Vejo aqueles que se dedicam a uma causa religiosa, não me refero aos fanáticos, mas aqueles que encontram paz numa religião, como nos falam dela seus olhos brilham e faíscam. Outros dedicam-se a uma certa filosofia política e vivem e morrem por essa causa. Enfim o mais importante da vida è ter uma razão, um rumo, um norte para se dirigir com os olhos cheios de esperança e certeza de uma vida melhor. Como diz uma certa canção de Roberto Carlos: "...é preciso saber viver". Jesus Cristo no evangelho segundo São Mateus nos conta a história de um certo homem que ao encontrar uma pedra de grande valor, vende tudo que tem para comprar aquela jóia. Fico a imaginar esse homem. De olhos esbugalhados, diante de um pedra preciosa. Para um leitor comum surge a seguinte questão: e agora o que vai fazer esse louco? Que vai comer? Que vai vestir? Na verdade de louco ele nada tem pois encontrou sua razão de viver!

4 de mar. de 2007



UM DOMINGO QUALQUER

Ainda conservava um resquício de beleza. Por trás dos olhos castanhos e das rugas que lhe desmentiam a maquiagem mal feita dava para ver que muitos janeiros por ela já haviam passado. Sentados na mesma mesa nós conversávamos, quer dizer, eu pouco falava, apenas respondia a algumas perguntas que ela fazia entre os poucos minutos em que pausava para respirar ou beber. Parecia uma daquelas estranhas personagens saídas de alguma página de Shakespeare, com cabelos curtos tingidos de louro, nos quais a raiz já despontava a cor verdadeira, um misto de preto e branco. Falava sem parar: Já morara em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Se casara três vezes e desses casamentos, dois filhos já adultos, homens, estavam em algum lugar do estado de São Paulo. Ela conta que perdeu o contato com os filhos depois que o pai ganhou na justiça o direito de criá-los e os levou. Ao se casar com o segundo marido esse exigiu que ela não recorresse da decisão do juiz e foram morar em Salvador. Muito mais tarde buscou alguma notícias porém não conseguiu localizá-los.
Pergunto-lhe como foi que veio parar aqui e ela responde de forma enigmática que veio "á toa", assim como não quer nada. Não entendo. Mas também não questiono. Seus lábios são de um vermelho roxo, estranha cor de baton. As unhas pintadas também de vermelho, já estão um pouco puídas nas pontas. A voz é um pouco rouca, , por certo, efeito de muitas taças de cerveja ou cachaça, dão a impressão de um ressaca que nunca se cura. Não me impressiona suas histórias mas principalmente, sua memória prodigiosa, pois relata fatos acontecidos há anos com uma incrível precisão de detalhes.
Lá fora um vento morno acaricia as palhas dos coqueiros. Estou aqui neste balcão de uma espécie de lanchonete bar, apenas esperando um ônibus, que me conduza de volta a Jequié, e já me preocupa a demora. Disseram que o motorista é muito pontual, exceto quando acontece algum imprevisto na estrada.
- Você já foi no Rio de Janeiro, - pergunta-me a mulher - trazendo-me de volta à mesa, respondo lhe que não, nunca fui ao Rio nem a São Paulo. Ela diz que lá teve que mudar de nome pois o terceiro marido com quem se casara era um contrabandista muito procurado em Minas e Espírito Santo e ambos adotaram identidades falsas. Aproveito o momento para perguntar-lhe o nome.
- Aurora, fala de supetão, entre um gole e outro.
- È o mesmo nome da minha avó - continua - Aurora Neves Souza.
Conta-me depois que sua avó ao morrer deixou uma casa para sua mãe, mas o pai que era viciado em jogo a perdeu numa posta e passaram a maior parte da vida vivendo de aluguel. Lembra-se com carinho do avô paterno, um padeiro que trabalhava no Brás, e que todas as vezes que ia visitá-los levava muitos pães e doces.
- Tudo passado, águas passadas, não voltam mais! - isso ela fala olhando para frente, não propriamente para mim mas para si mesmo.
Enfim o ônibus chega em meio a muita poeira e fumaça, quase vazio e despeço-me de Aurora, após pagar a conta. Da janela do ônibus retribuo o aceno que ela faz ainda sentada na mesa.
Apuarema, 4 de março de 2007.