3 de ago. de 2014


TENDO DOS MILAGRES

 JORGE AMADO(ROMANCE 1969)





Sabemos que uma das funções da arte é re-significar o já criado, e estabelecer novos diálogos entre o passado e o presente, engendrando uma nova leitura onde os elementos estruturais de um texto passam a ser os elementos estruturais do outro, na intrincada rede de fios narrativos e poéticos. O romance Tenda dos milagres de Jorge Amado, publicado em 1969, oferece-nos uma gama de possibilidades de leitura, dentre as quais destacamos o diálogo estabelecido entre a cultura popular praticada em Salvador e o discurso científico desenvolvido.
Tenda dos milagres é, basicamente, a narrativa das proezas e dos amores de Pedro Arcanjo, mestiço pobre, bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, que se converte em estudioso apaixonado de sua gente, publicando livros sobre o sincretismo genético e cultural do povo baiano. De leitor e autodidata Pedro Arcanjo ascende à posição de autor cujos livros são referência no combate ao racismo e à repressão à cultura afro-brasileira. Ao lidar pioneira e francamente com tais temas, Arcanjo cai sob a mira da elite “branqueada” da Bahia. É perseguido. Perde o emprego. E uma cortina de silêncio se forma em torno de sua obra, eclipsando-a. Só depois da morte do autor é que ela irá se impor, triunfando sobre o racismo provinciano, graças ao interesse que desperta num cientista estrangeiro. A figura de Arcanjo vai, então, renascendo das cinzas, num processo de revisão que se move do campo erudito para o popular, atingindo o ponto máximo com a homenagem que lhe é prestada, no carnaval da Bahia, pela Escola de Samba Filhos do Tororó.
Na cidade do Salvador apresentada no romance percebemos as fortes mudanças empreendidas no sentido de gerar a idéia de progresso a partir da instalação de indústrias e desenvolvimento urbano. O período apresentado como “tempo” do romance compreenderia o final do século XIX e início do XX quando no Brasil, para se modernizar, são aplicadas as chamadas teorias higienistas como base para a criação de um projeto nacional: as diferenças de raça e o evolucionismo das mesmas tornavam-se o ponto chave para a criação do tipo ideal nacional. Nesse contexto, as teorias apresentadas e defendidas por Silvio Romero, Oliveira Viana, Manoel Querino, Arthur Ramos, Conde de Gobineau e Nina Rodrigues entre outros fomentariam a ideologia desenvolvida nos centros de ensino nacionais como a Faculdade de Medicina da Bahia.
No livro fica perceptível essa luta ideológica travada entre a cultura popular e a ciência européia aqui adaptada através dos vários embates empreendidos entre Pedro Arcanjo, o delegado Pedro Gordilho e o professor Nilo Argolo; ou mesmo no combate realizado pelo aparelho estatal através dos jornais e da polícia, na busca de minimizar, ou mesmo exterminar, as práticas culturais desenvolvidas nos terreiros de candomblé, nas rodas de capoeira e dos grupos de afoxés durante o Carnaval. E, principalmente, na resistência empreendida pela população organizada na pessoa do “Rábula do povo”, o defensor dos pobres e dessa cultura que seria considerada de guetos mas estaria disseminada em todas as esferas da sociedade .
A importância dos diálogos travados entre a chamada cultura popular e a ciência no texto conduz o leitor ao grande projeto nacional revisto nas palavras de Archanjo que acredita ter descoberto o tipo ideal brasileiro na figura do mestiço, este representaria o encontro de todas as etnias gerando a idéia que seria apregoada por Gilberto Freyre de democracia racial. Por isso, ao defender a cultura mestiça Archanjo profetiza o futuro onde “...tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros e mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende?” (Tenda dos milagres...p.317-8).
Marysther Oliveira do Nascimento
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Literatura e Diversidade Cultural – UEFS
Colunista - Brasil Escola.co