24 de jul. de 2008

A CIDADE E A SAUDADE

Pacífico Ribeiro Rememora a Cidade Amada *

Paulo César da Silva Oliveira**

RESUMO:

O poema Jequié, é um soneto de Pacífico Ribeiro, escritor que nasceu em Jequié, em 13 de outubro de 1918. Esse poema foi publicado originalmente na coletânea o Meu Canto de Amor a Jequié, editado em 1988. É um olhar comparativo entre o presente e o passado num passeio sentimental em meio à cidade da memória e a cidade simbólica na qual o poeta colhe em cada rua uma saudade. O poeta percorre a cidade mais pela memória que por sua extensão física, apesar de achá-la bela e virente, ele se sente entristecido quando envolvido pela bruma do passado. A cidade real, a Jequié cantada pelo poeta, está presente através do uso de nomes próprios (Jequiezinho, Rio de Contas), contudo, encontra-se principalmente nas impressões sentimentais do eu lírico, que revisita poeticamente por meio de metáforas e trazendo novos sentidos que determinam seu valor poético.

Palavras-chave: saudade e cidade

JEQUIÉ

Pacífico Ribeiro

Jequié, terra do sol, formoso ninho,

Que me afagou na infância e mocidade.

Do seu berço ainda sinto todo arminho,

Aquecendo a ternura que me invade.

Desce o Rio de Contas de mansinho.

Beijando a parte morna da cidade.

Revejo a igreja, a ponte, o Jequiezinho,

E colho em cada rua uma saudade.

Minha terra cresceu, bela e virente,

Surgiram novas ruas, nova gente,

Velhos amigos já não vejo mais!

A bruma do passado me entristece,

Envolvendo minh´alma numa prece,

E cobrindo o jazigo de meus pais.

A cidade e a saudade

Saudade. No dicionário de Houaiss esse termo está definido como “sentimento mais ou menos melancólico de incompletude”. Essa incompletude quase sempre, pode ser aumentada ou diminuída pela memória ou mesmo a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável. Se para um lexicólogo renomado já é difícil definir esse termo, ainda mais difícil ainda é traduzi-lo numa linguagem literária em forma de versos em um soneto. Pacífico Ribeiro poeta que tentou traduzir em imagem poética todo o amor que sentia por sua cidade natal, neste poema intitulado Jequié retoma um tema constante na literatura o saudosismo da terra natal. O poeta inicia o soneto chamando a cidade de formoso ninho, evidenciando o caráter maternal e protetor do local de nascimento.

Jequié, terra do sol, formoso ninho,

Que me afagou na infância e mocidade.

Do seu berço ainda sinto todo arminho,

Aquecendo a ternura que me invade.

Esse primeiro quarteto inteiro é formado por metáforas que chamam a atenção pelo sentido de abrigo e amparo trazidos ao momento presente pela memória do autor: além de ninho, já citado, estão termos como: afagou, berço, arminho, aquecendo e ternura. A palavra ninho nos traz a mente um lugar de proteção e abrigo; o arminho, talvez devido à sua aparência simpática e pelagem valiosa, tem estimulado a imaginação do Homem. No Japão é considerado um símbolo de boa sorte e na Europa medieval e renascentista era visto como símbolo de pureza[1]. A imagem poética lembra um lar acolhedor onde se encontra refúgio e tranqüilidade. A própria sonoridade dos versos 1/3 com rimas pobres: ninho e arminho podem nos remeter aos sufixos formadores de diminutivo na língua portuguesa e que são usados estilisticamente para evidenciar o caráter afetivo imaginado por ele.

Desce o Rio de Contas de mansinho,

Beijando a parte morna da cidade

Revejo a igreja, a ponte, o jequiezinho,

E colho em cada rua uma cidade.

A Jequié cantada nessa segunda estrofe, não existe enquanto espaço construído, e sim, enquanto memória. Esta cidade poderia estar no mesmo rol daquelas descritas por Ítalo Calvino em “As Cidades Invisíveis[2]” (CALVINO, 2003, p.6). Diomira por exemplo era desconhecida por Marco Pólo, mas ao avistar alguns símbolos nela existentes, o viajante veneziano fica com a impressão de já tê-la visto anteriormente; e a razão disso era reconhecer os símbolos desta em outras cidades nas quais havia passado.

Segundo Paulo Sérgio Rounet (ROUNET, 1997, p.65), muitas cidades são originadas diretamente da concepção do mundo dos seus idealizadores. Em Pacífico Ribeiro, esta visão fica repleta de saudades, pois esse lugar cantado é visto em sua relação com o passado “e colho em cada rua uma saudade”. Os lugares acima citados, por certo ainda estão lá, mas, ao percorrer tais espaços, o poeta não pode revê-los com os olhos do presente, pois é ao passado que retorna. Percebe-se ainda nesses versos que o espaço urbano descrito pelo poeta se compõe de objetos do cotidiano real: A igreja, a ponte e o jequiezinho, confirmando as teorias de LYNCH (1997) quando levanta a proposta de que o conteúdo visual de uma cidade se constitui por cinco tipos de elementos: vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos, sendo estes últimos os objetos do real cotidiano. Unir-se a esses elementos não significava para o eu lírico um esconderijo, mas deles fazer-se elemento integrante, como preenchimento de seu vazio interior.

Minha terra cresceu, bela e virente,

Surgiram novas ruas, nova gente,

Velhos amigos já não vejo mais!

Do mesmo modo que Isidora era a cidade dos sonhos de Marco Pólo, Jequié é a cidade dos sonhos de Ribeiro. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; (...). Os desejos agora são recordações. (Calvino, 2003, p.12). Ao ver sua cidade crescer “bela e virente”, o poeta entende que o progresso da cidade é inevitável e os dois primeiros versos desse terceto possuem verbos no tempo pretérito. Pode se supor que o eu lírico estivesse ausente quando essas mudanças ocorreram. A nova gente que freqüenta essas ruas se contrapõe aos velhos amigos que não mais são vistos, afinal, os últimos, habitavam uma cidade que não mais existe, ou melhor, continua existindo na memória do poeta. É interessante notar a mudança do verbo no último verso do terceto: Vejo, o verbo está no presente, sendo a cidade declamada pelo poeta, um lugar imaginário, os limites do tempo e do espaço tornam-se necessariamente fluidos, presente e passado são retomados num flash tornando-os indistintos entre si, como preconiza Gaspar Simões: “O homem só é alguma coisa quando se imobiliza ou deixa imóvel fora dele o que num instante se foi” (SIMÕES, 1931, p.45-46). È principalmente esse instante que o poeta eterniza em versos.

A bruma do passado me entristece,

Envolvendo minh’alma numa prece

E cobrindo o jazigo de meus pais.

Nesse último terceto o passado comparado metaforicamente como algo misterioso e escuro: bruma. A saudade retoma com força os versos finais revelando todo o esforço do poeta ao reconstruir a cidade imaginaria em sua memória poética. Marco Pólo (CALVINO, p.10) ao relembrar a cidade de Zora, conta que a cidade se torna imagem extraordinária e direta para todo indivíduo que a visita. Em cada ponto do local a memória se torna completa, o acesso a ela é imediato. Desse modo, aquele que a freqüenta apenas uma vez tem em si tudo o que a cidade contém, tornando-a imutável. A cidade tornar-se-ia, então, o lugar ideal da permanência da informação memorial, ressaltada pela presença da palavra jazigo,local propício de lembranças pois lá estão os antepassados do poeta e por extensão dos habitantes de uma cidade. Em Zora apenas se tem a sensação de saber onde tudo está e da certeza da sua imutabilidade. “Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto(...) O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota.” Nos versos de Pacífico acima, nota-se a fragmentação do curso narrativo cronológico da vida. A imagem real é vista em pedaços que são captados pelos olhos e rapidamente codificados em palavras, formando um todo. Assim, aquela imagem que parecia cortada, se apresenta na íntegra, ainda que disforme.

Ao apresentar os elementos urbanos que constituem a cidade que ama e viveu, o poeta se revela como um homem saudoso e triste. Embora seu olhar fosse um olhar onisciente, que via a cidade com os olhos no passado, sua visão do real o mantinha intimamente conectado à realidade que o rodeava. Dela era ser integrante, alvo de todas as suas ações enquanto cidade. Era um transeunte, um passageiro, ou seja, um cidadão urbano.

REFERÊNCIAS:

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Publifolha, 2003.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico houaiss. Disponível na Internet. Httpp:// www.houaiss.uol.com.br . Acessado em 14/07/2008.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

RIBEIRO, Pacífico. Meu Canto de amor a Jequié. Salvador: Editora Arpoador, 1988.

ROUANET, Sérgio Paulo. A cidade iluminista. In: SCHIAVO, Cléia e ZETTEL, Jaime (org). Memória, cidade e cultura. Rio de Janeiro: IPHAN, 1997.

SIMÕES, João Gaspar. O mistério da poesia. Coimbra: Imprensa da universidade,1931.



* Artigo apresentado à professora Valéria Lessa Mota como avaliação da disciplina Literatura Brasileira V, no II período letivo de 2007 em julho de 2008.

** Aluno do VI semestre do curso de Letras da Uesb, campus de Jequié. E-mail: paulo.cesar1075@hotmail.com Fone: (73) 3526 3296



[1] Alguns exemplos conhecidos de arminhos enquanto símbolos de pureza incluem um quadro de Leonardo da Vinci “moça com arminho” e um retrato de Isabel I, de Inglaterra, onde a rainha-virgem aparece representada com um arminho no colo.

[2] Todas as citações feitas neste artigo são da Edição 2003 da publifolha.

11 de jul. de 2008

Por onde havia andado não sei. Mas o rosto esquálido, a pele enrugada e um olhar de medo e desconfiança causavam tristeza. as palavras desconexas e os cabelos brancos davam mesmo a impressão de demência. Aquele velho abandonado num ponto de ônibus, realmente causou em mim uma sensação estranha.
Aquela sensação me perseguia, mesmo quando entrei no trabalho. mecanicamente exerci minhas funções mas seu olhar de fogo era como um vigia atento. De repente sou interrompido em minhas cogitações pela voz veludosa de Manuela. Voz firme e sensual como uma canção de jazz.
- Não conseguia entender esse e-mail enviado pela loja Centrix.
- Pede para enviar uma segunda via do pedido pois a original foi extraviada.
- Qual o código que devo digitar o do produto ou da loja? - pergunta-me -
Respondo qualquer coisa querendo ficar sozinho outra vez, mas ela insiste em contar sobre a nova secretaria da diretoria. O perfume que exala do seu corpo é doce tão aveludado quanto a voz. Tento olhar nos olhos dela, mas não consigo sustentar o olhar. A menina perfumada tem um olhar penetrante e misteriosa. A associação é inevitável: "Olhos de ressaca oblíquos e dissimulados".
Um vestido rosa bem claro com alças leves conseguem manter seus belos seios hirtos e firmes imagináveis, mas não visíveis próximo ao meu corpo. Não tenho como me manter atento ao que ela diz, minha imaginação vaga entre a visão do velho abandonado na praça e essa beleza baiana aqui tão próximo.
- Você sabe que ela é formada em administração? pois é, numa dessas faculdades EAD! E o pior usa sempre aquele português pedante dos gramáticos!
E continua descrevendo com todos os detalhes possíveis os defeitos da nova funcionária.
Sua antipatia por certo devia ser causada pela beleza da outra. Não precisava. Sua pele morena, apenas realçava mais a beleza impudica...

6 de jul. de 2008

INTERVALO
Quem te disse ao ouvido esse segredoQue raras deusas têm escutado -Aquele amor cheio de crença e medoQue é verdadeiro só se é segredado?...Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.Não foi um outro, porque não sabia.Mas quem roçou da testa teu cabeloE te disse ao ouvido o que sentia?Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?Foi só qualquer ciúme meu de tiQue o supôs dito, porque o não direi,Que o supôs feito, porque o só fingiEm sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,A teu ouvido vagamente atento,Te falou desse amor em mim presenteMas que não passa do meu pensamentoQue anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,A teus ouvidos de eu sonhar-te disseA frase eterna, imerecida e louca -A que as deusas esperam da lediceCom que o Olimpo se apouca.
Fernando Pessoa

ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braçosE chama-me teu filho... eu sou um reique voluntariamente abandoneiO meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,Em mão viris e calmas entreguei;E meu cetro e coroa - eu os deixeiNa antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,Minhas esporas de um tinir tão fútil,Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,E regressei à noite antiga e calmaComo a paisagem ao morrer do dia.
Fernando Pessoa, 1913