25 de out. de 2007

Você já ouviu falar em pretores? Eles eram juízes que distribuíam a justiça, na Roma antiga. Pois foi um desses magistrados que deu origem a uma palavra de uso muito amplo na língua portuguesa.

Esse juiz, Lucius Antonius Rufus Appius, costumava vender, a quem pagasse mais, as sentenças que expedia. Como ele assinava L. A. R. Appius, logo a forma larapius passou a designar pessoas que agissem de modo desonesto, ladrões e gatunos. O vocábulo já entrou no português com esse sentido.

A procedência desse termo é controvertida, por não haver no idioma outros vestígios dele. Mas, se a versão é mais atraente que o fato, fique-se com ela.

Outra palavra cuja proveniência oscila entre a fantasia e a realidade é cesariana. Como Júlio César teria nascido de uma operação desse tipo, difundiu-se a idéia de que a denominação decorreu desse fato. Ocorre, porém, que, entre os romanos, só se praticava parto cesariano após a morte da gestante. E a mãe de César viveu muitos anos após o nascimento do filho ilustre.

22 de set. de 2007


Contos diversos

Quando o inverno chegou já estava prostrada na cama. As dores do reumatismo aumentavam cada vez mais à medida que o frio se intensificava. Linda, deslumbrante e maravilhosa havia sido em sua juventude. Agora era nada mais que um monte de ossos unidos por uma tênue camada de pele e tendões que doíam a cada instante. Sentia a morte se aproximar como uma nuvem escura que sem nenhum impedimento torna o azul do céu em cinza e chumbo turvando o horizonte.

Sabia que daquele quarto escuro, mórbido e frio jamais sairia. Nos poucos momentos de sobriedade lembrava-se com ternura de sua neta, Helena, tão distante mas sempre tão solícita, tão pronta a ajudá-la em qualquer momento. Ligava todos os dias para ela e ás vezes só de ouvir a voz de Helena suas dores diminuíam. Contudo agora, mesmo que quisesse não conseguiria falar com sua neta, pois a voz já não saía, o máximo que podia era emitir alguns sons guturais quase sempre ignorados por sua filha.

Ouviu vozes ao redor. No entanto não distinguia se eram vozes do presente ou apenas ecos de um passado remoto. Vozes imaginárias vindas de um passado distante e glorioso. Época na qual podia abrir as portas da sua casa para receber a nata da sociedade local em festas memoráveis. Tão concorridas eram estas que os convites eram esperados com impaciência pelos membros abastados daquela cidade.

- Maria, Maria! – gritou, porém não sabia se foi ouvida ou não. Tão fraca voz! Rouca, quase um sussurro.

Maria aparece com seu sorriso de eterna juventude, dentes brancos e bem feitos como de uma modelo daqueles comerciais de creme dental. Voz macia e veludosa qual um roupão felpudo que se usa após um banho refrescante.

- Quero água – sussurra, talvez apenas tenha pensado – não sabe se falou mesmo. Já não consegue diferenciar o que é real ou imaginário em sua vida.

Sabe apenas que por mais que tente apanhar alguma coisa, as mãos não se movem. Ouve Maria lhe perguntar alguma coisa. Ela lhe conta sobre a as novidades do São João em Jequié. A cidade está cheia. Muitas pessoas de fora chegam para curtir o forró e rever família e amigos. Helena em breve chegaria com o marido.

Enquanto as palavras cantantes de Maria soavam pelo quarto, seus pensamentos divagavam pelos outrora dourados anos em que sua casa ficava repleta de amigos nas festas juninas. Gente bonita, gente elegante, que vinha de Salvador, Ilhéus e até do Rio de Janeiro como os Góis sempre tão amáveis. Amigos do tempo da faculdade. Amigos que fizera nas lides do Fórum Bertino Passos . Gente que fizera parte de sua vida tão rica e feliz. Alguns já morreram, outros como ela ainda penavam a espera do desenlace final.

Do que se arrependia? Talvez do que não fez ou do que deixou de fazer por medo ou receio de se comprometer. O que faria outra vez se tivesse outra oportunidade? Viajaria mais, amaria mais, talvez fosse mais compreensiva com os outros. Seria menos possessiva em relação aos filhos e também cobraria menos do saudoso marido que se foi tão cedo. Alberto. Sempre tão carinhoso, tão solícito, tão pronto a satisfazer todas as vontades. A perda de um ente tão querido trouxe-lhe sofrimento no início, depois revolta e até que aos poucos no decorrer dos anos, foi se tornando em resignação. Se amou outros homens após a viuvez, foi só ocasionalmente na vã tentativa de preencher o vazio sufocante deixado por Alberto que partiu com apenas trinta e cinco anos.

Não se lembrava dos nomes desses namorados. Será que algum deles a amou de verdade? Ou apenas teria sido um objeto, uma espécie de troféu a ser exibido? Pois sabia que era cobiçada pelos homens da cidade. Alguns da sua idade, outros mais velhos ou ainda alguns jovens impetuosos que pensavam ser possível dominá-la. Se cansava deles facilmente, não iria perder a liberdade e a auto-estima mendigando carinho de ninguém. Nunca prometia fidelidade, também nunca exigia nada. Queria ser livre na sua viuvez, para seguir seu caminho sem impedimento ou compromisso oficial algum pois, conhecia vários exemplos: Amigas que viviam um casamento de mentira. Tendo de dividir os maridos com amantes. Algumas cometendo o disparate de se rebaixar a ponto de ir às vias de fato com mulheres de reputação duvidosa.

Sempre foi determinada e decidida e jamais se permitiria descer tanto. Se mantinha altiva. Sabia o seu lugar. Sabia que era digna de receber amor e ser amada de verdade, tolo do homem que pensasse o contrário.

Percebe que Maria ainda está falando, agora sobre uma certa vizinha ou algo parecido, sempre sorrindo ela descrevia os novos moradores da casa ao lado. Casa que pertencia a Doutor Apolinário e Rute sua esposa, tão tímida, tão recatada. Lembra-se da chegada desse casal à cidade nos idos anos cinqüenta. Juiz de direito que vinha assumir a comarca de Jequié com apenas vinte nove anos, doutor Apolinário foi recebido com festa. Ela mesmo fez um jantar em sua casa para recebê-los. Compareceram como sempre toda a alta sociedade. Jantar promovido por ela era um verdadeiro sarau. Com direito a crônica de Luís Cotrim e poesia de Alberto Grillo, sem contar a voz de Lúcio Meira que em seu violão cantava as mais belas canções de Sílvio Caldas.

Lembra-se dos olhares trocados entre o Doutor Macedo Vieira, médico recém-formado que havia montado um consultório médico, na rua Alves Pereira, de frente à Jequitaia Tecidos e que já possuía uma boa clientela e sua amiga Márcia Caribé. Com cara de conquistador, daquele tipo que aparece em filmes de faroeste, muito afetado e egocêntrico, pensava ser o tal. Mas o flerte durou pouco, afinal Márcia, sempre foi muito discreta em seus relacionamentos e não permitiria que outros percebessem. O jantar seguia tranqüilo. O prefeito, com jeito de coronel, plantador de cacau e proprietário de duas imensas fazendas que ocupavam toda a extensão do distrito de Florestal, contava dos melhoramentos feitos no bairro Joaquim Romão, e da chegada da eletricidade em todos os bairros da cidade, tão logo o governador liberasse a verba para a companhia de eletricidade; o Professor Alberico exortava à mulher do juiz sobre o clima da cidade e dizia que apenas o calor aumentasse ambos poderiam passar algum tempo na fazenda dele onde o clima era mais ameno que na cidade.

Alberto Grillo pede licença para saudar os novos membros da comunidade e discursa sobre a imparcialidade da justiça, sobre a divisão dos poderes e termina convidando todos a um brinde em homenagem ao casal recém-chegado, logo após declama uma de suas novas composições poéticas e num tom ufanista fala do entardecer, dos últimos raios que o sol espraia sobre a cidade de Jequié.

Lúcio Meira tem oportunidade de nos brindar com sua bela voz de barítono e seu violão sempre tão afinado, deixa a todos enlevados de prazer com uma ótima apresentação musical.

Maria leva água a sua boca e interrompe mais uma vez as memórias de Vânia que sorve a água com sofreguidão. Como era mesmo o nome do filho do doutor Apolinário? Álvaro? Talvez Alvino ou Aldair, não se lembra. Sabe que tinha cabelos lisos, bem pretos e que era tímido como a mãe, quase não levantava os olhos e só respondia ao que lhe perguntavam. Vestido numa camisa de viscose muito branca e uma calça de tergal preta, parecia muito pouco à vontade naquela mesa.

O jantar seguia tranqüilo e sereno. Vez por outra um vento frio entrava pelas janelas e balançava as imensas cortinas vermelhas da sala de estar. Vozes se alternavam numa conversa alegre e festiva. Mais uma vez o prefeito Laércio Torres retoma a conversa com voz grave e alta falando da política da região e da disputa eleitoral que se aproxima; para o prefeito, qualquer pessoa que não o elogiasse era oposicionista e dizia claramente não suportar esse tal regime democrático que permitia tanta liberdade de opinião.

- A democracia é a responsável de tanta bagunça no país, vejam só esse presidente Juscelino, quantos comunistas ele emprega no governo, será que ninguém vê isso? – dizia o prefeito.

- O que queres Laércio, que aqui vire uma espécie de grande Paraguai, governado por generais? – rebateu o professor Alberico Nunes, filho e neto de advogados, sempre prezou a liberdade e a democracia.

- Que seja! Venham os militares e coloquem ordem nisso que está aí, por que não?

Alberto interveio na discussão talvez com receio de se tornar a noite num debate político, dizendo que Juscelino não era comunista e que o Brasil tinha uma constituição que por si só impedia qualquer arroubo aventureiro de quem quer que fosse.

- Ademais o povo escolhe sempre homens responsáveis para administrar o país, não há o que temer – concluiu Alberto.

A noite seguia tranqüila. Um vento fresco vindo do sul soprava incessante nesta noite repleta de estrelas no fundo escuro do céu de setembro.

Esther e Alberto! sentiam que aquele amor nunca teria fim. De fato haviam sido feito um para o outro. Não podia conter a admiração que sentia por ele. Sabia que o seu marido era um homem equilibrado e sensato e nunca tivera ciúmes dele. A brisa, as vozes, os acordes do violão davam-lhe uma moleza no corpo, talvez efeito de dois cálices de vinho que tomou durante o jantar. Ah! Como queria que aquela noite não tivesse fim. Como queria voltar ao passado! Alberto tão elegante naquele blazer azul, sorriso lindo, apertando sua mão com carinho como se dissesse você é magnífica por nos brindar com uma noite igual a essa.

O primeiro a ir embora foi o prefeito. Homem da roça, não costumava dormir muito tarde e sempre acordava antes das seis da manhã. Despediu-se de todos com um sólido aperto de mão. Gigante com quase dois metros de altura, era um colosso. Forte. Impávido apesar dos quarenta e cinco anos, realmente de uma robustez admirável. Cotrim também sai logo após dizendo que ao chegar em casa faria uma crônica sobre essa noite e sobre a chegada do novo magistrado na cidade. Despede-se solenemente do Doutor Apolinário e de sua esposa e jovialmente de Esther e Alberto. Sai abraçado com sua esposa em direção ao carro que estacionaram em frente da casa. Alberto Grillo e Lúcio Meira despedem-se também dizendo que por ser a noite uma criança não iriam imediatamente para casa porém...

Não completaram a frase mas pode-se entender muito bem para onde foram. O juiz e sua esposa agradecem a recepção e dizem que vão querer retribuir um jantar em sua casa logo após se instalarem com mais comodidade. Aos poucos a casa vai ficando vazia, um a um vão saindo e por fim na grande sala de jantar ficam apenas a brilhante Esther e seu marido. Ambos satisfeitos. Mais uma vez puderam dar um jantar maravilhoso organizado por ela.

Maria oferece-lhe água e ela sorve o delicioso líquido com prazer. Cansada de ficar deitada pede a Maria que a coloque na cadeira de rodas, faz gestos para explicar o que seus lábios já não conseguem expressar. Maria sem muito esforço consegue acomodá-la na cadeira e abre a janela de onde ela pode ver o movimento das pessoas que passam na rua. O sol fraco de junho meio encoberto pelas nuvens não consegue aquecer o seu corpo envelhecido. Mas a brisa fresca roça-lhe o rosto com ternura, o que para ela é um prazer. Percebe que na casa ao lado seus novos vizinhos estão cortando uma imensa árvore plantada ainda na época do doutor Apolinário, uma amendoeira de quase quatro décadas de existência. Imponente, mas não resiste à força da moderna moto serra, em pouco tempo seus galhos vão ao chão, um a um, até ficar reduzido ao tronco.

Lembra-se perfeitamente que quem plantou a amendoeira foi o pai de Salete, Seu Euclides, farmacêutico, o primeiro morador daquela casa. Salete e ela eram da mesma idade e ambas estudavam no antigo Ginásio do Padre, ali na avenida Rio Branco. Brincavam no amplo quintal das duas casas. No quintal de sua casa tinha uma casa de madeira que seu pai lhe deu de presente e na de Salete, muitas plantas e flores pois, seu Euclides e dona Corina eram apaixonados por plantas e passavam as horas vagas cuidando do jardim.

Tempo! O que é isso? Uma hora era uma menina despreocupada brincando no fundo do quintal em um outro está sentada em uma cadeira recordando-se do passado.

Salete após o término do curso Normal foi para o Rio de Janeiro. Seu Euclides perdeu a farmácia após se endividar com os bancos devido a uma fazenda que comprou financiada pelo Econômico e não conseguiu pagar. Dona Corina havia morrido dois anos antes de um fulminante ataque cardíaco quando vinha da feira num dia quente de janeiro.

Viria ainda a se corresponder com Salete durante vários anos. Mas aos poucos as cartas foram rareando até cessarem de todo. Um dos filhos de Salete foi até nomeado delegado de Jequié na década de oitenta. Ficou pouco tempo, apenas dois anos, sendo transferido posteriormente para a capital.

Os homens que cortam os galhos da amendoeira não sabem quem foi Euclides, muito menos Salete e não se recordam do doutor Apolinário. São jovens o suficiente para só olharem para frente. Não perdem tempo com recordações. Fazem a vida acontecer. Nenhum deles estão preocupados com a iminência da morte. Com certeza querem celebrar o momento como todos os jovens fazem.

Finalmente o grosso tronco é derrubado. E ela não pode deixar de comparar aquela queda com a sua própria vida. Tanta vaidade. Tanto luxo. Para que? Para terminar os dias em cima de uma cadeira de rodas? Nunca foi religiosa e isso sempre causava-lhe ás vezes, uma certa angústia. Uma amiga muito religiosa, Luzia, sempre que conversavam falava-lhe de uma nova vida, coisas desse tipo. Mas ouvia apenas por educação. Sua posição social, suas amizades não eram condizentes com religiosidade, apesar de ir a missa de vez em quando ou ir a casamentos e batizados quando convidada.

Luzia. Justamente por causa desse mulher tão rigidamente puritana, que ela teve o privilégio de viver uma dos capítulos mais fascinantes de sua vida.

CAPÍTULO II

Maio de 1956. O vento ainda morno soprava sobre os cabelos de Esther na descida da rua da Itália próximo ao prédio dos correios. O céu parcialmente coberto de nuvens e um verão que teimava em não terminar. O mormaço poderia ser sinal de chuva. Ou não. O clima em Jequié era realmente uma incógnita. Alguns poucos estudantes vindos da Escola Castro Alves passam fazendo algazarra, entre sorrisos e gritos, esses barulhentos e irrequietos meninos vão curtindo a beleza da adolescência. Esther sente saudades. Saudades do filho que ainda não teve. No início do casamento sentia-se pressionada pelos parentes e amigos a ter um filho. Todos lhe perguntavam quando afinal viria o primeiro filho, mas o tempo foi passando e aos poucos todos foram se acostumando com a situação e Alberto nunca mesmo falou no assunto. Quando alguém questionava ele dizia que viria quando Deus quisesse.

Entra na avenida Rio Branco e se dirige a sua casa ali na rua Trecchina, o relógio da matriz anuncia que são cinco horas. Ao passar pelo portão sente o cheiro de sopa que Graça deve estar fazendo. Magnífica cozinheira. Tem o verdadeiro talento para as artes culinárias. Alberto dentre em pouco já estaria chegando da fazenda. Ele mal teria tempo para jantar e sairiam para uma sessão solene na câmara de vereadores. O membros desta casa resolveram de bom grato dar o título de cidadão jequieense ao velho farmacêutico Celli de Freitas e eles não iriam perder essa homenagem.

Alberto chega em casa às seis em ponto e mal dar tempo de jantarem, pois a sessão está marcada para ás dezenove e trinta. Partem sem muita demora: ele com um terno escuro e cabelo bem escovado, parecia um advogado e ela num vestido azul claro com um decote frontal que mandara fazer especialmente para aquela ocasião. Sentia-se feliz ao descer a rua ao lado do marido. Preferiram deixar o carro em casa.

Todos os amigos e conhecidos lá estavam. Sentam-se perto do professor Alberico que hoje está excepcionalmente elegante com um blazer azul marinho e uma camisa branca. Logo a frente deles estão o Lúcio Meira e o Alberto Grillo que os cumprimenta sorridente como sempre. Vozes abafadas, quase sussurradas ecoam aqui e ali, num burburinho inquietante da espera do início da cerimônia. Esther vê em uma das primeiras cadeiras o seu ex-colega de faculdade, Danilo, sobrinho do homenageado. Sente saudades do tempo em que ambos ainda estudantes de Direito, moravam em Salvador, quase vizinhos de República. Ele, na rua Chile, num apartamento com outros três colegas, e ela na Carlos Gomes dividia o apartamento com outras quatro. Nesta época, Alberto morava em São Paulo onde fora cursar agronomia. Já namoravam mesmo à distância, pelo menos nas férias de final de ano podiam ficar juntos por algum tempo. Enfim eram tempos deliciosos de pouca preocupação e muita diversão intercalado pelo estudo e compreensão das diversas matérias do curso. Quando Danilo se formou foi morar em Vitória da Conquista, onde montou um escritório e hoje tem uma clientela muito boa por lá. Passados apenas cinco anos de formado. Ela ainda enfrenta a resistência de muitas pessoas que não consideram uma boa idéia deixar suas querelas nas mãos de uma mulher. Mais Esther sempre soube que seria assim. Nunca se intimidou com isso. Altiva e confiante sempre levou a bom termo as causas que lhe caíram nas mãos.

A sessão solene começa e o presidente convida o homenageado a tomar assento na mesa. O secretário da casa ler os motivos que culminaram na outorga do título de cidadão jequieense ao doutor Celli, e após a leitura da ata da sessão recebe uma medalha, sob os aplausos da platéia. Nota-se claramente a ausência do prefeito, que naturalmente não gostava destes atos democráticos, e muito menos desta independência que os vereadores estavam demonstrando indicando alguém contra vontade dele para receber essa que era a maior honraria da cidade sol. Todos sabiam da antipatia que ele sentia pelo doutor, desde que este vendera um enorme terreno no bairro jequiezinho para um missionário protestante. O prefeito esperneou, berrou, mas o inflexível médico fez ouvidos moucos e não só vendeu como também passou a freqüentar os cultos que esse pastor e a esposa ministravam na casa que ele tinham lá na rua do oriente.

Ao voltar para casa Esther sente-se mal e quase desmaia no colo do marido. Sente vertigens pela segunda vez na mesma semana, e começa a desconfiar que pode estar grávida. Não pode dizer como na segunda-feira que foi apenas um desfalecimento por causa do calor pois, nesta noite estava ventando muito bem e o ar estava quase frio. No outro dia certamente iria marcar uma consulta com o doutor Sebastião Azevedo para ter certeza ou não da gravidez. Alberto já começa a sonhar com um menino correndo pela casa e, ela pensa nas noites mal dormidas que viriam quando o possível bebê viesse. Dorme sonhando com as transformações que viriam acontecer em sua vida.

19 de ago. de 2007

A Intolerância dos Tolerantes

de Ricardo Gondim

[Publicado na Revista Ultimato, Janeiro de 1997, pp. 40-41]

Há algum tempo recebi o convite para participar de um programa de debates, recém iniciado pela MTV onde abordariam a questão do homossexualismo. Aceitei com certa hesitação. Minha paixão pela polêmica me impediu de dizer não. Nos bastidores, antes de ir ao ar, percebi que seria minoria mais uma vez (embora seja pentecostal e corintiano). Sentei-me a mesa, rodeado por um drag queen e uma ativa militante do movimento lésbico. Mal o programa começou e já se percebia claramente que ele visava uma apologia do homossexualismo (ou homossexualidade como querem os politicamente corretos). Cada um dos mais de quinze painelistas se revezava em defender a prática homossexual como uma questão de preferência e não de ética. Finalmente a apresentadora do programa perguntou minha opinião.

Pausadamente, procurando me esquivar da pecha de fundamentalista e homofóbico expus o que penso ser um consenso do pensamento evangélico; "Cremos em um Deus criador e preservador de todo o universo. Ele, além de possuir pessoalidade, preocupa-se com a felicidade de toda a sua criação. Dele provém uma lei moral que fornece os parâmetros do comportamento humano e, por ser exterior a nós , não se molda às nossas preferências". “De acordo com essa lei” continuei com o mesmo tom de voz, "nós evangélicos, entendemos o homossexualismo como um pecado, uma perversão moral". Bastaram essas palavras. O tempo fechou. Quase todos ao redor da mesa falavam, cada qual subindo um pouco seu tom de voz. Alguns, descontrolados proferiam palavrões. Sarcasticamente, confesso, perguntei: "Afinal de contas este espaço não é plural? Por que não posso manifestar meu ponte de vista assim corno os senhores expõem os seus? Se vocês pregam a tolerância, por que tanta intolerância ao meu ponto de vista?" Meu sarcasmo não deu resultado. Cada vez que tentei falar, me abafavam aos gritos.

Modernidade

A modernidade sempre se gabou de respeitar os diferentes, Voltaire, arauto do lluminismo, dizia “Devemos tolerar-nos mutuamente porque somos todos fracos, inconseqüentes, sujeitos à mutabilidade ao erro. Um caniço vergado pelo vento sobre a lama porventura diria ao caniço vizinho vergado em sentido contrário ‘Rasteja a meu modo miserável ou farei um requerimento para que te arranquem e te queimem?’” Por que mesmo anunciando o respeito à opinião do outro, a Modernidade patrocinou as guilhotinas da Revolução Francesa? Por que o estado marxista promoveu o expurgo de Stalin? Por que na Alemanha, berço dos grandes filósofos e teólogos aconteceu o Holocausto? Se a modernidade é tão tolerante com o diferente, por que tanta intolerância?

Entendamos um pouco da Modernidade. Primeiro, ela valoriza o método. A tolerância para com a razão, para a prova "irrefutável", tornou-se desnecessária. André Comte-Sponville afirma “Quando a verdade é conhecida com certeza, a tolerância não tem objeto”. Ele e todos os filósofos da modernidade crêem que os cientistas necessitam não de tolerância, mas de liberdade. Os fatos, provenientes da observação empírica impõem-se. Refutá-los é negar a razão. Como a ciência não depende de opiniões, ela não necessita de tolerância mas de espaço. Depois, a Modernidade também é naturalista. Só trabalha com um sistema fechado. Matéria, energia, tempo e chance são as únicas variáveis consideradas. Portanto, a verdade está contida somente a esses elementos. Como filosofar é pensar sem provas, e provar faz parte do paradigma da Modernidade a filosofia (também a teologia) é tolerada, desde que obedeça as regras da abordagem científica e naturalista. Nesse sistema, somente os céticos ao transcendente como Hume e Bultmann recebem qualquer reconhecimento. O resto é descartado como irrelevante. Por último a Modernidade é universalista. Aceita que seus achados transcendem ao tempo e ao espaço. Devido a essa visão é que a Modernidade, de acordo com D. A, Carson adotou a dialética marxista da história, a teoria Helegiana do espírito universal, a visão pós-iluminista do progresso e a teologia liberal que aceita como factível apenas o que é julgado racional e “científico”. Aqueles que se recusam à ditadura da Modernidade, são imediatamente rotulados: medievais, supersticiosos, reacionários. A tolerância da Modernidade se restringe aos limites impostos por ela; quem fugir deles percebe rapidamente sua intransigência Mas, voltemos ao programa da MTV.

Entendendo a Intolerância

Por que tanta intolerância à ética judeu-cristã? Por que tanto incômoda à cosmovisão religiosa? O problema reside nos pressupostos transcendentais. O cristianismo baseia-se na revelação de uma lei moral, outorgada por um Deus que não pode ser definido como parte de minha humanidade (humanismo), reduzido a uma energia (naturalismo) ou mera projeção mítica (neurose freudiana). A premissa cristã que propõe a Revelação, o conhecimento do transcendente como um valor epistemológico, bate de frente com a Modernidade. O cristão sabe que sabe, por Revelação. Pedro já asseverava no primeiro século; "porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo." (2 Pe 1:21). Contrariamente, na Modernidade a verdade religiosa não é factível, é questão de opinião. Nunca ninguém pode estar absolutamente certo sobre os assuntos espirituais. Portanto religião não pode participar do debate público; deve manter-se reduzida à arena dos juízos e dos sentimentos; não é demonstrável nem refutável.

A revelação da lei moral de Deus, caso aceita, obrigaria as pessoas a obedecê-la, acabando com a noção de preferência. A Modernidade propõe que a lei moral seja uma construção humana, restrita à cultura e ao tempo de sua elaboração; caso aceitasse que provém de Deus reconheceria que todos, em todas as épocas, deveriam obedecê-la.

Sponville diz que uma ditadura imposta pela força é um despotismo; se ela se impõe pela ideologia, um totalitarismo. O problema da Modernidade é que, mesmo sem querer, vem se tornando cada dia mais déspota e totalitária. Não somente rechaça os valores da ética cristã, como tenta forçar seus pressupostos como únicas opções válidas, por serem "cientificamente irrefutáveis". O homossexualismo, por exemplo, é hoje discutido como uma questão de mutação do código genético, descartando a moral. Os militantes gays conseguiram manter o debate no nível 'científico', Nessa esfera, basta provar uma alteração nos genes e está tudo resolvido; “O homossexual foi programado, na evolução para agir daquele modo e não há como interferir em suas preferência. Mas o pleito homossexual é pequeno diante das implicações dessa nova ditadura. Carson propõe em seu livro The Gagging of God (O Amordaçar de Deus) que experimentamos uma nova espécie de intolerância. Em sociedades relativamente livres e abertas, a tolerância mais nobre é aquela exercitada para com as pessoas, mesmo quando se discorda de seus pontos de vista. 'Essa robusta tolerância para com as pessoas, mesmo quando há forte desacordo às suas idéias, gera uma medida de civilidade no debate público, mesmo quando a discussão é apaixonada". Para Carson o ocidente vive hoje uma tolerância somente de idéias, não mais das pessoas. As idéias são admitidas, só não se admitem pessoas diferentes (criam-se as tribos); à roda sentam-se sempre os mesmos.

O resultado de se adotar esse novo tipo de tolerância é que há menos discussão dos méritos de idéias conflitantes e menor civilidade. Há menos discussão porque a tolerância de idéias diversas exige que evitemos criticar as pessoas por adotarem aquelas idéias. Assim, a Modernidade vai admitindo excentricidades, loucuras e comportamentos bizarros. Ninguém tem o direito de dizer nada sobre o comportamento de ninguém. Só há problema quando qualquer idéia tenta provar sua superioridade sobre qualquer outra. Imediatamente, o mundo cai. Exclusividade é intolerável na modernidade, principalmente no campo religioso. A palavra proselitismo (na sua concepção técnica) virou palavrão. Cada um na sua. Desde que você não se intrometa com o meu estilo de vida. Ninguém precisa mudar, pois todas as opções religiosas, morais, éticas, filosóficas são válidas, não porque sejam verdadeiras, mas porque todas são igualmente questionáveis. Voltaire dizia; "O que é tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos feitos de fraquezas e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é esta a primeira lei da natureza."

O resultado disso tudo é um mundo cada vez mais inconseqüente quanto à sua ética, cada vez mais secularizado, e cada vez mais intolerante para com a fé cristã, mascarando seu discurso exclusivista e proselitista. Enquanto afirma que não há mais absolutos insiste que está absolutamente certo disso.

Saí do programa da MTV dizendo para mim mesmo; "Incrível como os liberais são fundamentalistas na defesa dos seus posicionamentos. Intolerantes! Não aceitam que seus pontos de vista sejam questionados por outros que pensam diferentemente. Talvez tenham medo de estar errados."

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26/03/07

20 de jul. de 2007



Não é a dor sufocando meu peito insano e teimoso que me trouxe até aqui. Não é a solidão dos espaços vazios na minha alma, nem esse vento frio e cortante, sentido pela memória dos tempos passados... talvez apenas imaginado. Sonhos, memórias e sensações do que pode ser mas ainda não é, possibilidades realizáveis ou não. Tácito como o sol quente no inverno de Jequié. Fria como a música compassada da chuvas noturnas. Eternas chuvas que são vívidas pungentes no eterno verão da solidão. Nem pensamento nem ação.Também não é inação. Nada de sonho nem reflexão. Esperança desperdiçada em horas nuas e vazias. Espelhos inexatos refletindo imagens ilógicas, demonstrando o terno caleidoscópio das minhas emoções. Solidão maior na multidão. Estar só entre muitos, fugir das relações sociais, medo maior do medo, certeza das incertezas imprórpria, contudo tão reais. Solidão, tábua de salvação, esconderijo secreto, tão propositamente secreto que nem se faz mister esconder.
Nuvens de tênue claridade e de diversa forma mostram todo o conteúdo do infinito, tendo como tecido de fundo o azul celeste e sua policronia eterna que se transmuda ao sabor das horas volúveis do dia. A brisa fina que acaricia meu rosto com ternura na sua invisibilidade de fada, não poderia prever as confusas sensações de uma alma feita de pó e pedra lavrada. Pedras que rolam incessantemente do meu peito lasso e fatigado. Transformando as experiências passadas através dos filtros do indevassável presente. Não se pode confiar na dor. Ela é má conselheira. Não se pode lutar contra a sua silenciosa presença. Sempre alternada entre espaços: Um breve acorde, depois infinitas pausas desertoras dos sons sitiantes das muralhas do meu ser.Não há escape, resistir até o fim. Forte e sereno, delicado e voraz, firme e exato, como as folhas secas da amendoeira do meu quintal, que se espargem ao redor do tronco altivo. Novas folhas brotam, reverberando o verde puro na eterna linha de frente da vida que insiste em não terminar. Melhor. Que se reveste de eternidade a cada novo gene repoduzido e duplicado num novo ser. Recomeçar e refazer. Silêncios que vão se espraindo no imutável revolver das notas do piano irreversível, tocandoas mais maravilhosas melodias ainda não musicadas, porém ouvidas por aqueles que tem, como diria o poeta:
"Alma de ouvir
e coração de escutar".

12 de jul. de 2007

Desencontros
Quando estive aqui pela primeira vez ela estava vestida de uma longo, muito azul e reluzente. Parecia mais alta devido ao salto. Os cabelos encaracolados estavam soltos. Eram negros e também brilhantes. De fato parecia mais jovem. Talvez a maquiagem a rejuvenecera naquela noite. Desta vez está em pé ante a grande janela de vidro que mostra o clarão luminoso da lua cheia sobre o fundo escuro dos morros que circundeiam Jequié.
Timidamente eclipsei-me numa roda de amigos que versavam sobre o novo time do Vitória e sua saga na segunda divisão do Brasileiro. Não conseguia encarar aqueles grandes olhos verdes dela sobre mim. Sabia que ela estava me olhando. Tentei disfarçar meu nervosismo participando do papo. Não conseguia esquecer que na última vez que nos encontramos ela estava tentando manter a pose de menina direita e bem comportada. No entanto após alguns goles numa taça qualquer ela estava dançando ao som de algum DJ gospel. Era um forma de dançar sensualmente encantadora. Com um olhar ela me convidava, naturalmente fiz que não entendi. Não dançaria com a noiva do Glauber, muito menos quando lá ele não estava. De plantão até às seis da manhã não pode vir. Depois não me acostumei ainda com danças e rebolados Gospel.
Sim a festa era de aniversário de uma garota dita Gospel. Um nome moderno para os antigos evangélicos. Afinal aqui na Bahia adquiriram certa coloração não puritana! Se é que me faço entender! Sei lá. Muita coisa aqui não parece o que é. A "Marcha Para Jesus" aqui virou o "Carnaval dos Crentes", Tem o São João Gospel, o Funk Gospel enfim existe até baiana de acarajé de Jesus. Na luta entre as forças estrangeiras do protestantismo e o sincretismo religioso baiano, a acomodação foi um forte abraço que uniu e modificou até as mais firmes crenças.
A música aumenta e na mesma proporção as vozes se alteiam. Parece que todos tem algo a dizer. O calor aumenta e me afasto em direção a janela tentando saborear o ar puro que emana das montanhas. Ela está sentada na varanda circurspecta, parece reflexiva.
Me aproximo cerimoniosamente e ela me diz que gosta de ver a lua brincando de esconde-esconde com as nuvens escuras de Julho. Fala como se fosse para ela mesma.
- Você sabe o que há atrás daquela montanha escura?! -Ela fala apontando para um morro alto que se ergue aos nossos olhos.
- Não, não sei! Você já foi lá?- pergunto.
- Sim,há uma outra montanha, responde rindo. Dizendo isso se levanta e vem em minha direção. - Não precisa ter medo de mim-continua- Não vou te fazer mal nenhum, vejo você sempre fugindo de mim como se eu fosse te agarrar a força. E ainda que assim fosse não te tiraria pedaço algum.
Tento me explicar porém não consigo, já ela está na minha frente me beijando apaixonadamente...
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2 de jul. de 2007

Reflexões a respeito do consumo

Por Guilherme Bryan

Hipermodernidade. Esse é o termo, surgido na década de 1970, que o filósofo francês Gilles Lipovetsky tornou conhecido, a partir de seu livro Os tempos hipermodernos, para descrever o período atual da humanidade, marcado pelo excesso, pelo efêmero e por um tempo cada vez mais acelerado. Em sua nova obra, A sociedade da decepção (recém-lançada no Brasil pela Editora Manole), o pensador revela porque a nossa sociedade tem mania de consumo, ao mesmo tempo em que é marcada pelo desperdício, pela tristeza e por uma verdadeira explosão da decepção.

"O consumo traz um pouco de felicidade para as pessoas por meio de lazer, cinema, turismo, etc. São pequenas felicidades que tornam a vida mais agradável. Por outro lado, há um mal-estar ao vermos jovens de 18 anos obcecadas por cirurgia plástica, maquiagem e jóias, e também outros que não têm um futuro profissional e são obcecados pelas marcas. Isso empobrece a imagem do ser humano. O que se deve fazer? A partir da década de 1960, muitas análises sustentaram que a sociedade consumista era terrível por ser uma fonte de frustração e decepção. Acho que os autores desses textos estavam e estão equivocados, pois nunca conseguirão reduzir o consumo dessa forma, já que, se as pessoas consomem, é porque precisam consumir devido à ansiedade, infelicidade e frustrações. Se antes elas iam rezar, agora vão ao shopping center. Portanto, nossa responsabilidade é educar nossos filhos para que tenham paixões diferentes e/ou além do consumo", acredita.

Na opinião de Lipovetsky, não é a questão do consumo a mais importante com relação à frustração da sociedade atual, mas, sim, a da relação das pessoas com o trabalho e a vida afetiva. "Existem formas de consumo que são decepcionantes. Só que são exatamente aquelas que, antigamente, achávamos que nos protegiam da decepção. Muitos teóricos, por exemplo, afirmavam que não havia decepção com relação à alimentação. Eu penso que é o contrário: a alimentação se tornou um setor que acarreta muita decepção. No que se refere às mulheres, existe uma relação altamente problemática com a alimentação, pois, a partir do momento em que se come, há o medo de engordar. Depois elas fazem regimes que são altamente decepcionantes, pois perdem peso, mas acabam depois recuperando esse mesmo peso", comenta.

Para Lipovetsky, a televisão também é uma das fontes mais importantes de decepção: "Quando você compra uma TV, raramente se decepciona com a compra ou com o objeto, a não ser que ele quebre ou não funcione. Mas, em compensação, o que você vê e ouve na TV te traz um monte de decepções, praticamente diárias. Por que as pessoas ficam zapeando, procurando outro programa? Se estivessem adorando e totalmente envolvidas com o programa que estão vendo, não mudariam de canal. Então a televisão é feita de pequenas decepções contínuas. Afinal, as pessoas querem ser surpreendidas o tempo todo com coisas novas".

De acordo com Lipovetsky, não é possível deixar de realçar a importância do amor, uma vez que ele é praticamente inseparável da decepção. Essa questão não é novidade, assume o filósofo, mas atualmente ela está cada vez mais presente. "A experiência amorosa, na maioria das vezes, se concretiza por uma grande decepção. Qual é a reação das pessoas? Há as que, imediatamente, vão à caça de uma nova aventura. Outras procuram se proteger da decepção. E há ainda aquelas que transferem todo seu amor para os animais, uma vez que eles nunca decepcionam. É o contrário do ser humano, que decepciona sempre", reflete.

O filósofo se atém também no trabalho como um dos principais causadores de frustrações na sociedade hipermoderna. "Há muitos jovens que têm dificuldade em entrar no mercado de trabalho. Já as pessoas com mais de 50 anos, quando perdem seus trabalhos, vivem verdadeiras tragédias, pois têm muita dificuldade em retornar ao mercado de trabalho. Essa questão está relacionada a um código de trabalho muito rígido e a tendência, em minha opinião, deveria ser a uma maior liberalização do mercado de trabalho, que trouxesse novas formas de proteção ao trabalhador. Um modelo interessante é o adotado pelos países escandinavos, denominado segurança flexível. Nele, demitir um funcionário pode ser feito sem maiores dificuldades. Só que a pessoa que fica desempregada recebe por um período bem curto 90% de seu salário e um treinamento para incentivá-la a retornar ao mercado de trabalho. Esse é um novo modelo de solidariedade. Por sua vez, com relação aos jovens, deveriam ser feitas transformações profundas no sistema escolar. Umas das mudanças deveria ser criar pontes da escola com a empresa para que, já na escola, o jovem possa entender o que significa trabalhar numa empresa", aposta.

Lipovetsky pode ser considerado pessimista quando reflete a respeito do atual esvaziamento político mundial: "A decepção com relação aos políticos existe em todas as democracias desenvolvidas. Na América Latina, por exemplo, existe uma imensa decepção com relação aos políticos, incluindo o Brasil, onde a corrupção é tão forte. Essa decepção também é bastante presente nos países do Leste Europeu, os ex-países comunistas, que sonhavam com um mundo livre, cheio de abundância e bem-estar. No entanto, a realidade deles é marcada pelo desemprego, corrupção e novos ricos. Ou seja, com o fim do comunismo, há agora a globalização, que, ao mesmo tempo em que traz suas riquezas, é marcada por grandes desigualdades, o que cria uma decepção ainda maior pelo fato de ainda não existir um modelo capaz de se contrapor a esse. Antigamente, havia grandes utopias e as pessoas acreditavam que o mundo seria outro após o comunismo. Hoje em dia, além do Hugo Chávez, ninguém mais acredita nisso".

Porém, o filósofo francês não se considera um pessimista e procura indicar caminhos positivos para o futuro: "Eu não sou pessimista. Acredito que há possibilidades de corrigir essa situação. As últimas eleições na França, onde houve um índice de 85% de pessoas que votaram, são ótimos exemplos. Esse é um índice extraordinário. Então, se os líderes políticos trouxerem novas soluções e lançarem novos caminhos, as pessoas estarão aí querendo ouvir, apesar de estarem cansadas das promessas da retórica política. Há um novo desejo dos cidadãos de participar da vida política. O [Nicolas] Sarkozy [eleito presidente francês em maio de 2007], por exemplo, nos últimos anos, fez o 'discurso da verdade'. Dizia as coisas tais como são, mesmo que fossem contrárias aos interesses de seu partido político. Não sei se ele será bem-sucedido, mas, de qualquer modo, é preciso dizer que a globalização não é a única responsável pela decepção. Há também uma fraqueza dos aparelhos políticos. A meu ver, a classe política deveria ser mais dinâmica, rápida e ágil, afinal estamos na era da Internet".

9 de jun. de 2007

Já dizia o sábio Asdrúbal, meu grande amigo, morador aqui da rua Perpétuo Socorro no Jequiezinho, que o homem vale o que é e não o que tem. Asdrúbal tinha muitas qualidades: Carpinteiro, um verdadeiro artista na arte de fazer poltronas e cadeiras e ótimo jardineiro. Aliás o jardim de sua casa constava de cerca de cem espécies de flores diferentes algumas silvestres e creio que nem ainda classificada pelos estudiosos de botânica. Bem, esse mestre da madeira e das flores uma vez me contou uma história que me fez refletir sobre o amor nas relações familiares e sua importância para formação do caráter de indivíduo. A história aconteceu aqui mesmo em Jequié, lá pelos anos quarenta.
Tudo começou quando o Procópio, pai de Asdrúbal veio morar na rua das Pedrinhas, atual XV de novembro. Próximo a eles moravam uma família de classe média alta, a família Correia Sá, sendo que o patriarca, já falecido naquela época, havia deixado algumas dívidas e muitos problemas para os filhos e a esposa. O mais velho, Alexandre, formado em direito e recém-casado com Berenice, a Berê, teria que tocar para frente os negócios do pai: Uma fazenda com algumas dezenas de cabeça de gado e mais algumas casas que alugavam no pequeno centro comercial de jequié
Acontece que o velho Procópio era viciado em jogos, principalmente rinha de galo, onde fazia altas apostas e possuía um elenco muito variado de brigões e valentes machos galináceos. Noites adentro em apostas foi se descuidando dos negócios e arriscando cada vez mais a saúde física e finaceira dele e da família.
Ás vezes ganhava em apostas o suficiente para pagar os empréstimos que tomava no banco e isso o encorajava a investir mais nesse negócio de alto risco. Outras perdia tanto que mal podia paga o Armazém Zetti, e fiava confiando no recebimento dos aluguéis para cobrir os débitos. Amiúde não tinha nem um centavo para mandar para as filhas que estudavam no Colégio Marista em Vitória da Conquista, e era obrigado a vender algumas rêses por preço de banana, mas nunca atrasava o pagamento das freiras.
Sua mulher, dona Augusta, sofria as ausências e noites afora que o marido passava. A fazenda na mão de um capataz, as casa de aluguel se deteriorando, carecendo de uma reforma e o marido tal um vampiro dormindo de dia e varando noites em uma casa de apostas. O quintal cheio daqueles bichos que ela aprendera a não gostar:Galos. Cânticos estridentes ao alvorecer que faziam-na estremecer. Ódio e rancor no coração. Há vários meses não fora a modista encomendar novos vestidos pois o marido nunca estava disposto para fornecer-lhe o dinheiro. Sofria calada como era comum as mulheres da sua classe que eram educadas para serem esposas e mães devotadas. Ainda que humilhadas ou desprezadas teriam que se manter firme em casa cuidando dos filhos e manter as aparências em público. A boa família jequieense!
Numa noite o velho perdera numa aposta duas casas: uma na Damião Vieira e outra na Abelardo Góes. Perdera para Guilherme, marceneiro já respeitado na cidade por ter talento, e por isso muito requisitado em toda região. O galo de Procópio, apelidado de galoneira, não ressitiu ao "Prefeito" do marceneiro. Fizeram mais uma aposto. Outros desafiantes do Prefeito, nenhum resistiu. Resultado: duas casas perdidas.
No outro dia foram ao cartório acertar as contas com as escrituras a as propriedades teriam novo possuidor. Na hora do almoço o olhar resignado e acusador da mulher e os suspiros de Alexandre. O pai com os olhos vermelhos de cachaça e insônia mal erguia a cabeça. Vícios. E seus desdobramentos. Na casa ao lado festa. O marceneiro recebia amigos para comemorar e mostrar o seu campeão.
Procópio morreu naquela mesma noite. Mal súbito. Coração Parou. O corpo não suportou tantas noites mal dormidas e muita cachaça e pouca comida. Enterro de rico. Alta sociedade. Autoridades. Família em choro moderado. As meninas vieram de Conquista. Estavam lindas. Olhos verdes lacrimejantes. Brilho sem cor.
Seguiu-se os dias de luto e ordem das coisas foi voltando ao normal. Alexandre assume então o comando dos negócios e aconselha a mãe para que as meninas fiquem em Jequié até pagar a s demais dívidas que o malfadado jogador deixara. Tentatia recuperar na justiça as casas perdidas pelo pai.
O vizinho aos poucos foi crescendo financeiramente e pode dar uma educação esmerada aos dois filhos nas melhores escolas da cidade. Porém o mesmo defeito do falecido lhe acometera também. Vivia fazendo altas apostas. Asdrúbal conta que uma vez ele perdeu quase tudo que possuía numa rinha de galo e desesperado e envergonhado após ficar só com a casa e oficina que lhe dava o sutento, fugiu repentinamente deixando para trás a dor e a vergonha para mulher e filhos.
Sozinhos e sem dipor dos bens perdidos pelo pródigo pai tiveram que se virar, com os meninos tocando a carpintaria e as meninas fazendo doce. E assim seguiram. Não tinham vergonha de sair nas ruas apregoando as gulosiemas que facbricavam de forma aterzanal para vender nas ruas da cidade.
Enquanto isso os seus ex-ricos vizinho se digladiavam acerca dos poucos bens administrados pelo irmão mais velho. Segundo Asdrúbal, o problema foi tão grave que sequer conseguima se sentar na mesma mesa. E mais grave. Alexandre não queria mais ajudar a mãe nem lhe dar uma pensão alegando que os outros não queriam fazer nada e ele não se sentia obrigado a sustentar-lhes. No final ficaram mais pobres ainda com despesas com advogado e desestruturação da família. A velha morreu. A mais nova fugiu com um homem casado para Salvador. Para Asdrúbal
essas famílias sao exemplos de como alguns enfrentam as adversidades e superam e outros se perdem num meio de um trubilhão. Eu, que não sou nenhu filósofo, prefiro não opinar mas sei que para quem éstá acostumado a ter pouco mais fácil enfrentar as dificuldades que aqueles que nasceram no berço de ouro e não tem nenhuma resiliência na bagagem.

27 de mai. de 2007

Luzia Joanna
Final de uma tarde de verão. O ano? 1984. Março. Rua Agapito Fernandes no Jequiezinho. Cenário de um dos melhores dias da minha vida. Talvez hoje passados mais de vinte anos a memória me traia. Talvez não. Me recordo de que ela estava vestida de um vestido branco, com alças. Curtos o suficiente para admirar a beeza ímpar de sua belas pernas, esculpidas por minha paixão juvenil. O que as tornava mais belas. O coração batia em total descompasso como um bumbo em uma parada da guarda municipal. Seus olhos negros me atingiam e feriam mais que mil holofotes. Exuberantes seios e uma boca fina de lábios delicados. Meu amor não era tímida. Eu sim. Seus olhos exalavam a paixão de uma mulher, ainda que só tivesse quinze anos. Eu na meu incontido desejo, não sabia o que fazer com as mãos. Uma troca de beijos e olhares. Carícias primeiras de dois adolescentes aprendizes nessa longa jornada da vida. Medos e recatos comuns aqueles que ainda não sabem das infinitas probabilidades do próprio corpo de sentir prazer.
Momentos únicos de uma irrepetível primeira vez. Amor apixonado e suave prazer. Orgasmo. Talvez sim, mas a certeza de que agora se faz parte de um novo rol. Daqueles que conhecem o poder de Eros. Experimentaram da maçã e que estranhamente não foram expulsos do paraíso.
Ao contrário libertos da culpa da inexperiência. Corpo lasso. Por trás das corinas azuis. O impávido ceú cor de chumbo. E o silêncio quebrado apenas pelo ritmo de dois corações apreensivos e esperançosos. Se fosse possível parar o tempo, esse seria o momento ideal. Ainda porque nossas vidas teriam rumos diversos. Bem falo como adulto hoje. Não. Tento recuperar a magia daquele tempo e sei o quanto é difícil. Calejado por falsa ilusões e paixões passageiras que o tempo e axperiência nos levaram. A vida com diria Cecília Meireles ´"só é possível reiventada.

29 de mar. de 2007

Caminhava sem rumo às margens do Rio de Contas. O mormaço desta sexta-feira, o fazia suar desvairadamente. O coração opresso. A dor da solidão. O medo do futuro. As incertezas do presente. Agora, o chão já não tinha a consistência dura do cascalho. Seus pés pisavam na areia, agridoce do rio. Quente e úmida. A vegetação também mudara. O verde predomina sobre o cinza. Os umbuzeiros sempre verdes parecem reluzir suas folhas rebeldes. Insolentes contra o sol do sertão. Os passos largos demonstram indisfarçável cansaço. Um pato d´agua voa sorrateiro em voltas curtas e desajeitadas. Uma garrincha solitária destila sons agudos e perfeitos escondida nos galhos de uma umburana. O juazeiro imponente abriga um bando de Açus. Mudos, graúdos, observadores. Silêncio. Vento morno. A cidade está tão longe. Sente aquela paz só possível quando se isola de todos. Encontra uma pequena elevação debaixo da sombra de uma gameleira e para para refazer as forças. . Tira a camisa e o tênis, os coloca numa pequena pedra e mergulha no rio. A agua refrescante molha seu corpo suado. A sensação é indiscritível. Parece sofrer um choque térmico. Ao sair da água em direção à sombra protetora da gameleira, já sente o corpo mais leve. Como se uma imensa carga o tivesse deixado.
Sempre seria assim? se pergunta. Deita-se com as mãos espalmadas sobre a cabeça, usando a camisa e o tênis como travesseiro. Na imensidão cinza do céu, vê o vôo calma e sereno dos urubus seguindo tranquilos as correntes aéreas. Uma imensa paz toma conta do seu coração. adormece tranquilo e sonha com a sua mãe. ela está vestida de verde claro, sorrindo sentada numa cadeira de vime na varanda da casa em que moraram no Alto da Balança, no jequiezinho. Uma fita vermelha na cabeça. Sua avó aparece e de repente não estão mais na varanda e sim na fazenda Fontinha. Tudo muda de repente e ele esta voando sobre o teto da igreja Matriz. Porém a igreja está fora de lugar, virada para o poente e não para o nascente. Acorda depois de algumas horas e sente uma imensa vontade de chorar. Tenta adivinhar o canto dos pássaros ao seu redor ficando de olhos fechados. O canto macio do Cardeal, o triste assobio das lavandeiiras. Falta os canários, hoje raros, quase extintos.
Sabe que tem que voltar. O sol se apressa em declínio atrás da Serra da Salgada. Solidão. Casa vazia. Oca. Seu ocupado pai ainda não deve ter chegado. Uma casa grande e vazia. No entanto, o maior vazio é aquele que atinge seu peito. Que aflinge sua alma. A dor da timidez, da ausência, daquilo que poderia ser e não é. O caminho de volta é mais fácil. Desce tranquilo e sem o mormaço da vinda. O vento agora é fresco. As árvores balançam seus ramos imprecisos. A mudança no solo é sentida com certo prazer. Sair do areal o permite andar muito mais rápido. Vê as primeiras casas. Vê os trabalhadores retornarem às suas casas após um dia de labuta. Vê de volta a silhueta dos telhados altos do centro da cidade. Entra na rua onde mora. Muitos adolecentes voltando das escolas. Risos. buzinas. Carros e motos. Abre a porta. Sobe a escada calmamente. Essa é sua vida. Esse é seu refúgio. E seu cárcere.

17 de mar. de 2007

OUTONO

O calor forte de março ainda aquecia a eterna e insólita Cidade Sol. Nas ruas de paralepípedos o sol crestava o dorso das pedras com avidez. O vento morno e calmo desta tarde silenciosa dava um certa malemolência no andar de Kátia. Saía de casa atrasada mais uma vez, já eram duas horas da tarde e entraria no trabalho quinze minutos depois.Chegaria depois do horário. Certamente receberia uma advertência verbal e discreta da gerente, Patrícia, com sua voz metálica e firme, dita com doçura, é verdade, mas com muita determinação.
No ponto de ônibus abre maquinalmente a revista que traz na bolsa. Uma dessas revistas de fofocas e boatos sobre celebridades. Na seção de astrologia lê que nesse inicio de Outono os astros lhe estavam favorável. De repente fica extasiada com a frase: Nesse início de Outono. Outono. Nunca mais havia reparado que o ano se dividia em estações. Isso só se ouvia na época da escola. O outono começa hoje! Pensou e quase sorriu. Parece ter pensado em voz alta. Um homem de meia idade sentado ao lado olhou para ela de surpresa. Seu coração batia descompassado. Como se descobrisse algo novo. Como se encontrasse um grande tesouro. Seu corpo se agitava num frêmito inquietante. Qual a razão de tanta agitação. Outros outonos já vivera e se quer havia percebido. Muitos marços passaram por ela sem que se apercebesse de uma nova estação. Lembrava-se daqueles livros que as escolas públicas, nas quais estudou adotavam. Livros que traziam as ilustrações das "Quatro Estações" perfeitamente divididas. E sonhava com um lugar que caísse neve no inverno ou ventasse frio no outono. Mais Jequié não admite meio termos! -admirava-se Kátia. Ela própria é toda um interjeição. Ou se está quente ou se está menos quente. Sim é verdade que quando chove algumas pessoas chegam a usar jaquetas, mas apenas para não passar a oportunidade e ficarem sem usar. Não faz frio propriamente. Concluía com determinação.
Outono. Kátia vê o ônibus se aproximar do ponto mais não faz menção de se levantar. O homem de meia idade levanta-se e entra no coletivo. Porém ela tão extasiada está que não percebe , definitivamente chegaria atrasada no trabalho. Outono! Parece uma poema - pensava. Sorria para o céu totalmente azul desta tarde. Sorria porque descobrira que não precisaria ir para um emprego do qual não gostava. Acabara de descobrir que a vida era algo tão simples como a palavra outono. Lá estava ela escondida entre fotos de celebridades e previsões astrais. No entanto quantas emoções indescritíveis sentia ao lê-la. Ao recitá-la em voz baixa. Viver! Outono! A quanto tempo não havia esquecido de si mesma! Quantos momentos de sua vida vivera em função dos outros, se admirava.Quantos abraços deixou de dar, quantos beijos, quanta ternura poderia ser compartilhada se viesse a pensar mais em si mesma.
Kátia levantasse do ponto de ônibus e segue em direção a sua casa. Uma imensa liberdade circunda o seu coração e satura a sua mente. Outono! agora é minha vez de viver!

11 de mar. de 2007

O CHOFER
Todo dia de manhã cedo era o primeiro a chegar ao prédio da Prefeitura Municipal de Jequié. Naquele tempo ainda ficava no centro da cidade, ali próximo a praça dos Caixeiros Viajantes, quase em frente a casa de Tote Lomanto. Radiante em um uniforme azul marinho e um quepe também azul, lá estava ele todo feliz, se chamava João Cardoso mas, todo mundo lhe conhecia como Chofer. Durante alguns anos servira à família Lomanto como motorista particular, e agora fora escolhido pelo prefeito Lomanto Jùnior como motorista da prefeitura, melhor, do gabinete do prefeito, naquele ano de 1954. Tamanha alegria só fora superada pela notícia de que se trajaria de chofer e que seu uniforme fora encomendado na Rua Chile, em Salvador.
Desde então ele se transformara. Para quem ainda não o conhecia, sempre se apresentava como o Chofer do Prefeito. De pele escura, com uma pequena mais saliente barriga, e um sorriso branco e espontâneo, João Chofer era todo devoção ao Prefeito. De uma fidelidade canina e sincera, sem nenhuma intenção além de servir bem àquele que para ele era seu grande benfeitor.
Nesta manhã de Domingo, quando as chuvas de março caem sobre a Cidade Sol, sacodindo os galhos baixos da goiabeira e agitando os imponentes galhos da cinquentenária mangueira no meu quintal, sem vontade de levantar, fico rolando na cama. Lembro-me deste Chofer lendário de Jequié. Incrível que nós seres humanos. Com nossos defeitos e qualidades. Ambições e sonhos. Ás vezes nos esquecemos do fim principal da nossa vida. Como é fácil se perder nos caminhos da vida! Como é difícil acertar a rota. João Chofer na sua simplicidade encontrou um caminho, um objetivo: Servir ao prefeito. Se para ele aquilo o dignificava, como não será edificante servir a uma causa maior. Vejo aqueles que se dedicam a uma causa religiosa, não me refero aos fanáticos, mas aqueles que encontram paz numa religião, como nos falam dela seus olhos brilham e faíscam. Outros dedicam-se a uma certa filosofia política e vivem e morrem por essa causa. Enfim o mais importante da vida è ter uma razão, um rumo, um norte para se dirigir com os olhos cheios de esperança e certeza de uma vida melhor. Como diz uma certa canção de Roberto Carlos: "...é preciso saber viver". Jesus Cristo no evangelho segundo São Mateus nos conta a história de um certo homem que ao encontrar uma pedra de grande valor, vende tudo que tem para comprar aquela jóia. Fico a imaginar esse homem. De olhos esbugalhados, diante de um pedra preciosa. Para um leitor comum surge a seguinte questão: e agora o que vai fazer esse louco? Que vai comer? Que vai vestir? Na verdade de louco ele nada tem pois encontrou sua razão de viver!

4 de mar. de 2007



UM DOMINGO QUALQUER

Ainda conservava um resquício de beleza. Por trás dos olhos castanhos e das rugas que lhe desmentiam a maquiagem mal feita dava para ver que muitos janeiros por ela já haviam passado. Sentados na mesma mesa nós conversávamos, quer dizer, eu pouco falava, apenas respondia a algumas perguntas que ela fazia entre os poucos minutos em que pausava para respirar ou beber. Parecia uma daquelas estranhas personagens saídas de alguma página de Shakespeare, com cabelos curtos tingidos de louro, nos quais a raiz já despontava a cor verdadeira, um misto de preto e branco. Falava sem parar: Já morara em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Se casara três vezes e desses casamentos, dois filhos já adultos, homens, estavam em algum lugar do estado de São Paulo. Ela conta que perdeu o contato com os filhos depois que o pai ganhou na justiça o direito de criá-los e os levou. Ao se casar com o segundo marido esse exigiu que ela não recorresse da decisão do juiz e foram morar em Salvador. Muito mais tarde buscou alguma notícias porém não conseguiu localizá-los.
Pergunto-lhe como foi que veio parar aqui e ela responde de forma enigmática que veio "á toa", assim como não quer nada. Não entendo. Mas também não questiono. Seus lábios são de um vermelho roxo, estranha cor de baton. As unhas pintadas também de vermelho, já estão um pouco puídas nas pontas. A voz é um pouco rouca, , por certo, efeito de muitas taças de cerveja ou cachaça, dão a impressão de um ressaca que nunca se cura. Não me impressiona suas histórias mas principalmente, sua memória prodigiosa, pois relata fatos acontecidos há anos com uma incrível precisão de detalhes.
Lá fora um vento morno acaricia as palhas dos coqueiros. Estou aqui neste balcão de uma espécie de lanchonete bar, apenas esperando um ônibus, que me conduza de volta a Jequié, e já me preocupa a demora. Disseram que o motorista é muito pontual, exceto quando acontece algum imprevisto na estrada.
- Você já foi no Rio de Janeiro, - pergunta-me a mulher - trazendo-me de volta à mesa, respondo lhe que não, nunca fui ao Rio nem a São Paulo. Ela diz que lá teve que mudar de nome pois o terceiro marido com quem se casara era um contrabandista muito procurado em Minas e Espírito Santo e ambos adotaram identidades falsas. Aproveito o momento para perguntar-lhe o nome.
- Aurora, fala de supetão, entre um gole e outro.
- È o mesmo nome da minha avó - continua - Aurora Neves Souza.
Conta-me depois que sua avó ao morrer deixou uma casa para sua mãe, mas o pai que era viciado em jogo a perdeu numa posta e passaram a maior parte da vida vivendo de aluguel. Lembra-se com carinho do avô paterno, um padeiro que trabalhava no Brás, e que todas as vezes que ia visitá-los levava muitos pães e doces.
- Tudo passado, águas passadas, não voltam mais! - isso ela fala olhando para frente, não propriamente para mim mas para si mesmo.
Enfim o ônibus chega em meio a muita poeira e fumaça, quase vazio e despeço-me de Aurora, após pagar a conta. Da janela do ônibus retribuo o aceno que ela faz ainda sentada na mesa.
Apuarema, 4 de março de 2007.