7 de mar. de 2010

Poesia marginal dos anos 70 ganha antologia e dialoga com novos poetas

DANIEL BENEVIDES
Colaboração para o UOL
Os anos 70 ficaram marcados pela truculência da ditadura, mas também pelo chamado desbunde, versão mais debochada do movimento hippie. Essa dicotomia entre desencanto e celebração da vida ficou bem evidente nos versos dos poetas da época, ditos marginais: ao mesmo tempo em que resistiam à repressão com espírito utópico e ironia típicos da contracultura, buscavam a intensidade prosaica das experiências sensoriais - o popular sexo drogas e o que mais "pintar". O tom era coloquial, despretensioso, libertário.
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    Antologia "Destino: Poesia" (esq.) resgata poesia marginal dos anos 70; os novos "Logocausto" (c) e "Esquimó" dialogam, mesmo que por contraste, com a poesia da contracultura

Ana Cristina César, Cacaso, Torquato Neto, Waly Salomão e Paulo Leminski, agora reunidos nessa pertinente e divertida antologia organizada pelo crítico Italo Moriconi, tinham esses traços em comum, cada qual à sua maneira.

Ana Cristina e Torquato pintavam seus poemas com cores um tanto mais escuras, reveladoras de um desespero íntimo, um desentendimento grave com a vida. Por mais que tentassem infiltrar certo humor em seus escritos - e, no caso de Torquato, a melodia que gerou algumas canções memoráveis, o que sobressaía era quase um pedido de socorro. Ambos aceleraram de encontro ao suicídio. Tornaram-se mitos românticos, na acepção ampla da palavra.

Cacaso e Leminski pendiam mais para o poema bem-humorado, feito de frases curtas, ritmo leve, ideias originais. O primeiro, conterrâneo e, em certo sentido, herdeiro de Drummond, buscava o riso inteligente, o comentário ácido, muitas vezes de cunho político. Já o curitibano Leminski, um dos mais cultuados até hoje dentre os cinco, tinha um estilo único, algo entre o beatnik e o concretismo, entre a confissão embriagada e o sóbrio hai kai.

Waly Salomão, por sua vez, era o tropicalista do grupo, o mais colorido, expansivo, performático. Seus poemas tinham aquele jeito de conversa meio louca, um pouco como no caso de Ana Cristina, que no entanto era mais experimental, "difícil".

"Destino: Poesia", com ótima introdução de Moriconi e pequenas biografias dos poetas, é um retrato fiel da poesia dos 70, cúmplice da música popular, diversa mas unida na resistência à violência dos militares e à sisudez dos "caretas". Vale por cada flash em technicolor.

Dois novos
Leandro Sarmatz e Fabrício Corsaletti são dois poetas nascidos nos 70 que de certa forma dialogam, mesmo que por contraste, com a poesia do desbunde e da contracultura. Dos dois, o gaúcho Sarmatz, com seu breve e valioso "Logocausto" (Editora da Casa), uma reunião de poemas que foi dilapidando ao longo dos anos, é o menos ligado à geração do mimeógrafo, como também ficaram conhecidos os contemporâneos de Torquato Neto e Ana Cristina César. Se é que se pode falar em filiação, ele está mais para o modernismo anterior, "estrangeiro", de Cummings, Celan e William Carlos Williams. Seus poemas, elaborados com rigor autocrítico, são revestidos de ironia sofisticada (no melhor dos sentidos), e permeados por cultas referências literárias. A condição judaica - como sugere o neologismo do título, é um tema presente em cada linha, implícita ou diretamente. Para encarar a história sofrida de seus antepassados, o autor, também dramaturgo, chega a inventar uma nova ciência dos sentimentos: a "Ecologia da Memória", ao mesmo tempo em que desconfia da religião e seu "messias fajuto". Com um pessimismo que não dispensa o humor e até a escatologia, declara que "toda graça está no achar-se em meio à perda" e que as palavras são "uma praga, um lamento surdo: um exílio".

Já Corsaletti talvez ficasse mais à vontade entre os poetas brasileiros dos 70. Tal como Leminski e Cacaso, pratica o verso curto, de ideias bem-humoradas e diretas, às vezes próximas de um slogan surreal ou existencialista, ou mesmo da piada, que surte efeito imediato. Os poemas de "Esquimó" (Companhia das Letras), claros, concisos, sugerem espaços livres das sombras, em meio a uma floresta de possibilidades. Nos melhores momentos atingem o nervo (mas com anestesia): "- meu único gesto sincero/ depende de garfo e faca". Também adepto das referências - no caso, mais "pop", o autor recorre a um certo minimalismo, com variações sutis e repetições eloquentes. E "comete" divertidos poemas de amor e desejo, como na declaração à atriz Eva Green, em "Plano", e no poema final, o melhor do livro, "Seu Nome", no qual o nome da amada, nunca dito, batiza todas as coisas.



"DESTINO - POESIA"
Autor: Diversos
Editora: José Olympio
Páginas: 160
Preço: R$ 28

"LOGOCAUSTO"
Autor: Leandro Sarmatz
Editora: Editora da Casa
Páginas: 36
Preço: R$ 12

"ESQUIMÓ"
Autor: Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 80
Preço: R$ 31

4 de mar. de 2010

Quatro décadas de corrupção, pobreza e abusos no futebol brasileiro

Ano de Copa do Mundo é sempre garantia de bons lançamentos na área editorial. O primeiro tiro certeiro de 2010, indispensável para estudantes de jornalismo e interessados em jornalismo esportivo, é “11 Gols de Placa – Uma seleção de grandes reportagens sobre o nosso futebol”, organizado pelo jornalista Fernando Molica.

O livro reúne onze trabalhos de fôlego sobre o “lado B” do futebol brasileiro, ou seja, sobre os graves e perpétuos gols contra que vem marcando ao longo do tempo. Como escreve Molica, explicando a sua seleção, é “uma escalação que mistura corrupção, pobreza, desemprego, falsificação de documentos, abuso e exploração de menores”.

A primeira reportagem é o premiado texto de João Maximo, “Futebol brasileiro: o longo caminho da fome à fama”, publicado no “Jornal do Brasil”, em 1967, no qual o jornalista descreve os sérios problemas de saúde – de subnutrição a sífilis – que enfrentavam então os jogadores dos principais clubes brasileiros.

O livro traz ainda uma segunda série publicada no final da década de 60, “O Jogador é um escravo”, na qual Michel Laurence, José Maria de Aquino e Luciano Ornellas mostraram, em “O Estado de S.Paulo”, como os jogadores de futebol se submetiam ao desígnio de dirigentes esportivos, aceitando tratamentos médicos criminosos, assinando contratos em branco e não recebendo os seus direitos básicos.

"11 Gols de Placa" dá, então, um salto até a década de 90, e apresenta reportagens sobre assuntos que o leitor deve se recordar. Para citar apenas algumas, há a série de “O Globo”, assinada por Marco Penido e equipe, sobre corrupção e negociação de resultados na Federação de Futebol do Rio de Janeiro, e a descoberta, por Sergio Rangel e Juca Kfouri, da “Folha de S.Paulo”, das contas furadas da CBF e do contrato da entidade com a Nike.

Entrando no século XXI, a seleção de Molica mostra a persistência de velhos problemas. A série de Diogo Olivier Mello, publicada no “Zero Hora”, em 2001, revela as desigualdades sociais no mundo da bola, além dos graves problemas que jogadores enfrentam durante e ao final da carreira. O livro se encerra com a reportagem de Andre Rizek e Thais Oyama, publicada em “Veja”, em 2005, sobre a “máfia do apito” montada para fraudar resultados de partidas de futebol.

Todas as reportagens são acompanhadas de textos introdutórios, preparados especialmente pelos autores para o livro, nos quais revelam o “making of” do trabalho que realizaram e contam bastidores não incluídos nos textos.

“11 Gols de Placa” (378 págs., R$ 49,90) é o terceiro título de uma parceria entre a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a editora Record, que já rendeu também “10 Reportagens que Abalaram a Ditadura” e “50 Anos de Crime”.

2 de mar. de 2010

Se os Tubarões Fossem Homens

Bertold Brecht

Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não moressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.

***

Um Homem Pessimista

Um homem pessimista
É tolerante.
Ele sabe deixar a fina cortesia desmanchar-se na língua
Quando um homem não espanca uma mulher
E o sacrifício de uma mulher que prepara café para
seu amado
Com pernas brancas sob a camisa -
Isto o comove.
Os remorsos de um homem que
Vendeu o amigo
Abalam-no, a ele que conhece a frieza do mundo
E como é sábio
Falar alto e convencido
No meio da noite.

...

Esse Desemprego

Meus senhores, é mesmo um problema

Esse desemprego!

Com satisfação acolhemos

Toda oportunidade

De discutir a questão.

Quando queiram os senhores! A todo momento!

Pois o desemprego é para o povo

Um enfraquecimento.

Para nós é inexplicável

Tanto desemprego.

Algo realmente lamentável

Que só traz desassossego.

Mas não se deve na verdade

Dizer que é inexplicável

Pois pode ser fatal

Dificilmente nos pode trazer

A confiança das massas

Para nós imprescindível.

É preciso que nos deixem valer

Pois seria mais que temível

Permitir ao caos vencer

Num tempo tão pouco esclarecido!

Algo assim não se pode conceber

Com esse desemprego!

Ou qual a sua opinião?

Só nos pode convir

Esta opinião: o problema

Assim como veio, deve sumir.

Mas a questão é: nosso desemprego

Não será solucionado

Enquanto os senhores não

Ficarem desempregados!